A suprema profundidade

Semana retrasada aconteceu a formatura do namorado da minha prima. Colação de grau em medicina, muito, MUITO barulho, muitos, MUITOS formandos. Fiquei distraindo o filhinho dele, que é uma das minhas maiores paixões do mundo. Ele se chama Yuri, tem 1 ano e uns 8 meses, ama música e é fofissimo. Pois bem, no meio daquele barulho, muitas pessoas sendo chamadas para pegar o diploma, o Yuri queria correr por todos os cantos. Fiquei com medo dele sair correndo, estava de salto e não conseguiria nunca ir atrás. Por isso, resolvi sentar com ele no chão e peguei uns papéizinhos laminados que estavam ali. Eram daqueles tipos de papéis picados que as máquinas jogam para o ar, e fazem uma chuva de prata [‘que cai sem parar’ #videokefeelings]. Jogava o papel pra cima e esperava cair. E esse ato serviu para entreter o Yuri.

Era como se eu tivesse passando o desenho predileto dele em cada papel que caía, tão grande a atenção que ele dava aos papeis. Quando o papelzinho caía em cima dele, então… esperava chegar perto da perna , ria e batia palmas. No meio daquela balbúrdia, era naquilo, e apenas naquilo que ele olhava. Os papéis eram o mundo dele. Quanta simplicidade! Quanta profundidade!

Muda a cena, o assunto nem tanto. Assisti ao filme “Minha Felicidade” (Schastye Moye), filme russo de diretor ucrâniano – Sergei Loznitsa – na Mostra. Aliás, assisti numa das últimas sessões da repescagem da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Era um filme que queria ver desde que li o quanto Luis Carlos Merten falou dele em Cannes, no começo do ano. A sessão aconteceu na Cinemateca, numa sala gelada. O frio da sala era intensificado pelas cenas de neve – que começam a surgir da metade para o final do filme – e pelo fato de eu estar com uma roupa “de verão”. Mas não me incomodava em nada, tinha entrado no filme.

Estava ali, dentro dele, até quando escutava o barulho incômodo das personagens andando na neve. Quase senti meus pés molhados. Quando o filme terminou, as luzes foram ligadas, saí da sala, embasbacada com a fodice do que tinha acabado de assistir, nem percebi as outras pessoas da sala. Parecia o baby Yuri, com toda a sua atenção voltada para o papelzinho laminado. No caso, eu tinha voltado todas as minhas atenções para as cenas, história e língua do filme [sim, gosto de escutar russo #prontofalei].

O filme é profundo, com elementos simples, quase tão translúcido quanto o papelzinho laminado. Ele mostra uma imagem cruelmente verdadeira de como a violência e a burocracia operam na Rússia pós-socialismo. O filme não só mostra, mas também mexe em algumas feridas meio podres do país, como a violência internalizada nas pessoas. A miséria de espírito e a perda de moral que ocorre apenas quando as pessoas ficam desesperadas. O tom da história é de desespero contido. Sabe quando você está com raiva, mas ninguém pode saber que está? Sabe quando você faz aquela besteira, mas ninguém pode saber que você fez?

A polidez da personagem principal é logo quebrada pela jovem [quase criança, pra falar a verdade] prostituta. E é massacrada pelos ladrões de estrada. O que acontece é que esta personagem principal, Georgy, é um caminhoneiro que percorre o interior da Rússia para levar sua carga de farinha. Parte do começo do filme é uma câmera na boleia, bem pra você vê a precariedade das estradas cosacas. Quando se vê em um engarrafamento, Georgy conhece uma jovem prostituta e decide  levá-la para sua cidade natal. Como cavalheiro, ele dá o dinheiro para a adolescente comprar comida e ir para casa. Ela, irada, briga com ele na cena que acho mais crucial do filme. Um diálogo que amaldiçoa Georgy: “não preciso do seu dinheiro, nem da sua compaixão”, ela fala. “Você não voltará amanhã para me dar mais. Posso ganhar dinheiro com o que tenho, com isso [bate nas suas…partes íntimas]” e joga o dinheiro em cima dele.

Sem entender, ele vai embora, mas se perde e para em uma estrada de terra no meio do bosque. É aí que tudo se perde, mesmo. Georgy confia em um ladrão de estrada e tudo se torna um devaneio. Um devaneio sobre a violência. Uma violência desnecessária, suja. Porque você sabe que ela vem para que algumas pessoas se deem bem. Pessoas que poderiam ter uma profissão, mas preferiram roubar. Dentro disso, ainda entram pequenas histórias, facetas da Rússia. Um menino se torna mudo depois de ver seu pai, um professor pacifista, ser morto por soldados cosacos. Georgy emudece e se transforma. É uma porrada, direto no estômago. Como eles podem viver assim? Por que isso está acontecendo? É o frio? Que realidade é essa?

Nem tudo é falado. Mas quase tudo é mostrado. Uma explicação pode residir no fato de que Loznitsa é documentarista, sabe captar a realidade em cenas. Mesmo na ficção mais maluca existe um tipo de realidade da qual não se consegue fugir. O que mais choca nesse filme é seu senso racional e objetivo. Nem Loznitsa, nem Georgy querem mudar o mundo; nem apenas retratá-lo. É um belíssimo gancho de direita, se querem saber. Se prestar mesmo atenção no filme, não conseguirá ficar incólume a ele. E talvez seja essa a ideia: passar a ação para nós, espectadores.

Não sei de vocês, mas eu não gosto de ter a minha inteligência menosprezada, nem hipervalorizada, por pessoas. Minha relação com o cinema, dessa forma, reflete isso. Não vou ser uma espectadora passiva que aceita e se ajoelha para qualquer coisa que me é contada. Quero poder entender um pouco mais. Cinema é apenas uma invenção. Arte é apenas uma invenção. Por que eu não posso inventar também? Por que o diretor ou o pintor pode isso? Onde está escrito? Qual é a lei que diz isso? Em que cânone está escrito que as personagens só podem falar e pensar daquele jeito que nos mostram? Por que devo acreditar que o the end é mesmo o final? Por que não posso descobrir as intenções por mim mesma?

São questões demolidoras de bases que me faço. E amaria que as pessoas se fizessem. Porque duvido que as pessoas escolham se acomodar por vontade própria. Duvido que simplicidade seja a mesma coisa que banalidade. O Yuri viu muito mais naquele papelzinho caindo que muitas pessoas assistem em cinemas; ele viu razão, sentido e comicidade naquilo. E isso é de uma profundidade matadora, assustadora. Mas não assustadora o bastante para espantar um bebê com menos de 2 anos de idade. Nem para me assustar. O universo está na frente dos nossos olhos, mas isso não significa que a gente olhe de verdade para ele. É tudo uma questão de treino e de demolição de certezas.

Entre a conformidade e a profundidade, sem dúvidas, escolho a segunda.